terça-feira, 27 de agosto de 2019







Direito Sistêmico



Publicado artigo sobre as primeiras experiências com constelações no judiciário

Direito Sistêmico: primeiras experiências com constelações no judiciário

Sami Storch
Publicado originalmente na Revista Filosofia, Pensamentos e Práticas das Constelações Sistêmicas – nº 4, de 03 de outubro de 2015.
INTRODUÇÃO
Quando ingressei na magistratura, no início de 2006, já estava cursando minha primeira formação em constelações e, desde o princípio, a visão sistêmica vem me auxiliando na compreensão das dinâmicas existentes nos conflitos com os quais lidamos na Justiça, assim como na busca da melhor solução em cada caso.
Os conflitos surgem no meio de relacionamentos e, nas palavras de Bert Hellinger, “os relacionamentos tendem a ser orientados em direção a ordens ocultas. […] O uso desse método faz emergir novas possibilidades de entender o contexto dos conflitos e trazer soluções que causam alívio a todos os envolvidos”1.
O mero conhecimento dessas ordens ocultas, descritas por Hellinger como as “ordens do amor”, permite a compreensão das dinâmicas dos conflitos e da violência de forma mais ampla, além das aparências, facilitando ao julgador adotar, em cada caso, o posicionamento mais adequado à pacificação das relações envolvidas.
A quem se permite conhecer essas ordens através das constelações familiares, elas se integram e se refletem naturalmente nos diversos meios de nossa vida, inclusive o profissional.
Em minha prática judicante, portanto, a aplicação da visão sistêmica e do conhecimento das ordens do amor começou a se dar de forma discreta, durante as audiências nas ações judiciais da área de família. Posteriormente introduzi meditações e exercícios de constelações propriamente ditas, com representantes, e venho realizando experiências também na área criminal e na de infância e juventude.
Neste artigo abordo as primeiras experiências, já com resultados consolidados.
UMA HISTÓRIA DE AMOR
Desde o início, o uso de frases “sistêmicas” revelou-se de grande força, no sentido de sensibilizar as partes envolvidas no conflito, levando-as a olhar para um contexto maior e a reconhecer o amor existente na origem do relacionamento e a dor sofrida por ambos, pelo fato de ele não ter dado certo.
Em audiências nas ações de divórcio, alimentos e disputa pela guarda dos filhos, logo ao perceber a existência de uma forte animosidade e resistência para a realização de um acordo entre as partes, que frequentemente já chegam manifestando mágoa e raiva, não permito que qualquer das partes fale muito, especialmente no sentido de se queixarem ou atacarem mutuamente, para não alimentarem o conflito e a necessidade de resposta no mesmo tom.
Peço-lhes silêncio e explico que, apesar desse sentimento que estão expressando, elas estão ali por causa de uma história de amor. Um dia ambos se conheceram e se gostaram. Tiveram momentos de prazer e, quando foram casados e têm filhos em comum (na maioria dos casos isso ocorreu), viveram um amor. Talvez tenham se apaixonado. Quando casaram e se expuseram à possibilidade de ter um ou mais filhos juntos, certamente tiveram sonhos, fizeram planos, se imaginaram numa família feliz e harmônica. Fizeram promessas um ao outro, e com isso alimentaram a esperança de um futuro feliz, juntos.
Ao dizer isso, costumo observar que ambos já estão emocionados, ao verem-se no começo de seu relacionamento e lembrarem do profundo amor que tiveram.
E prossigo, falando da dor da separação: depois de tanta expectativa, perceberam que o outro não era como imaginavam. Cada um tem hábitos que o outro não esperava; cada um quer lidar com os filhos de forma diferente; não demonstra respeito como se esperava, em relação ao parceiro e à sua família; não demonstra carinho como se esperava; e assim por diante. Então as partes percebem que aquele sentimento de mágoa e raiva, na verdade, encobre a profunda dor que sentem pela falência do relacionamento.
Nesse ponto, é comum que ambos estejam chorando. Já não se lembram da raiva e da vontade de vingança, pois entraram em contato com o sentimento primário da dor. Essa dor precisa ser vista e vivenciada, para que possa dar lugar à paz.
Agora ambos têm filhos juntos, mas não conseguem conversar entre si para resolver como fazer, não disfarçam a raiva, nem escondem dos filhos comentários de crítica e menosprezo em relação ao(à) ex-companheiro(a). “Seu pai não presta”; “ele não paga nem sua pensão”; “ele não vale nada”; “sua mãe não te educa direito, ela não sabe de nada”; “é uma vagabunda”; “não quero vocês convivendo com aquele sujeito”, são frases comumente ouvidas pelos filhos de pais separados.
Convido as partes a imaginar como o filho se sente ao ouvir frases como essas e como demonstrações de desrespeito e desconsideração entre os pais podem gerar conflitos internos nos filhos, com dificuldades de relacionamento, de concentração e de aprendizagem na escola, assim como eventual envolvimento com drogas. Isso porque o filho sente uma profunda conexão com cada um dos pais e é constituído por ambos. Negar a importância e o valor de qualquer um dos pais tem, para o filho, o efeito de negar a sua própria importância. Faz com que, internamente, ele se sinta desintegrado e vazio. Essa criança se sente amada, se não vê os próprios pais respeitarem sua origem?
Explico, portanto, a importância de deixar o filho fora do conflito, e sugiro que se imaginem dizendo a ele frases como: “eu e seu pai/sua mãe temos problemas, mas isso não tem nada a ver com você; nós somos adultos e nós resolvemos”; “fique fora disso; você é só nosso filho”; “eu gostei muito do seu pai/sua mãe, e você nasceu de um momento de amor que tivemos”; “eu e seu pai/sua mãe estaremos sempre juntos em você”; “quando eu olho para você, vejo seu pai/sua mãe”.
Essas explicações têm se mostrado bastante eficazes na mediação de conflitos familiares e, na grande maioria dos casos, depois disso as partes reduzem suas resistências e conseguem chegar a um acordo.
Assim, comprova-se na prática das conciliações na Justiça a realidade do ensinamento de Bert Hellinger quando fala a respeito da “separação humilde”, dizendo que frequentemente, na separação, procura-se o motivo, pois acredita-se que, sabendo o motivo, a separação poderia ser impedida. A procura do motivo é dominada por uma ideia de poder.
No entanto, segundo HELLINGER:
“Quando renuncio a procurar o motivo, sou obrigado a me submeter a um destino que não compreendo. Se faço isso, tenho uma outra possibilidade de me expor à separação, e também de me expor ao parceiro, do qual me separo. Aí não existem mais discussões. Reconhece-se: aconteceu algo e não está em meu poder mudar isso. Quando houve uma culpa que levou à separação, o que levou à culpa, também não está em nosso poder. Então se acabam essas diferenciações e isso promove a paz”².
Com o acordo, basta ao juiz homologá-lo para que produza os efeitos de uma sentença. Evita-se, assim, a necessidade de uma instrução processual – com nova audiência para ouvir testemunhas, o que pode ser altamente nocivo no sentido de agravar os rancores e prejudicar a relação – e de uma sentença que imponha uma solução, sujeita a não ser cumprida e deixando insatisfeitos ambos os envolvidos.
AS PALESTRAS VIVENCIAIS DE CONSTELAÇÕES FAMILIARES
Depois de algumas experiências em audiências com explicações sobre as dinâmicas sistêmicas dos relacionamentos, sugerindo a mentalização de frases, utilizando constelações com bonecos e visualizações, com resultados bastante interessantes nos índices de acordos, propus ao Tribunal de Justiça da Bahia um projeto para a realização de uma palestra vivencial com o tema “Separação de casais, filhos e o vínculo que nunca se desfaz”, contando com a participação de pessoas envolvidas em ações judiciais na área de família. Obtive imediato apoio e incentivo, de modo que entre outubro de 2012 e setembro de 2013 realizamos seis eventos desse tipo na Comarca de Castro Alves/BA, cada um com a presença de 40 a 100 pessoas, aproximadamente.
Os eventos têm início com uma palestra, proferida por mim, sobre os vínculos sistêmicos familiares, as causas das crises nos relacionamentos e a melhor forma de lidar com isso, principalmente de modo a preservar o desenvolvimento sadio dos filhos. Em seguida é feita uma meditação, onde as pessoas entram em contato com o verdadeiro sentimento de amor e perda decorrente da crise familiar. Depois, podem vivenciar o método das constelações familiares – “constelando” sua própria questão familiar, participando da constelação de outra pessoa como representante de alguém da família ou apenas como observadores.
À pessoa que se dispõe a colocar sua questão, pergunto apenas qual o tipo de processo em que está envolvida (divórcio, alimentos, inventário, guarda, etc.) e quantos filhos tem em comum com a outra parte. Não permito que fale detalhes ou nomes, para não expor intimidades naquele âmbito – muitas pessoas ali se conhecem, por ser uma cidade do interior, e a lei garante o segredo de Justiça em relação aos processos que envolvem menores de idade.
As constelações seguem o modelo tradicional, sempre com uso de representantes para evitar exposição pessoal de quem se dispõe a colocar a questão. Às vezes, conforme o caso, ao final as próprias pessoas envolvidas são convidadas a assumir seus lugares na constelação.
Como em cada evento são colocadas somente duas ou três constelações, procuro priorizar temas com os quais as outras pessoas possam se identificar, tratando basicamente sobre a relação do casal e as causas da crise, bem como da posição e postura em relação aos filhos, tirando-os do “fogo cruzado” e liberando-os do peso do conflito. É o suficiente para uma variedade de temas se apresentar – abortos, mortes, doenças, relacionamentos anteriores, adoções, etc.
Durante as constelações, procuro agir da forma mais didática possível, de modo que os aprendizados sejam compartilhados por todos ali presentes, que em sua maioria são pessoas bastante simples (inclusive muitos trabalhadores rurais e analfabetos). Assim, “leio” em voz alta as minhas percepções e os movimentos que observo. Sempre, porém, cuidando para que se preserve a intimidade e a honra das pessoas envolvidas.
ALGUNS RESULTADOS
As técnicas aplicadas vêm auxiliando na efetivação de conciliações verdadeiras entre as partes. Durante e após o trabalho com constelações, os participantes têm demonstrado boa absorção dos assuntos tratados, um maior respeito e consideração em relação à outra parte envolvida, além da vontade de conciliar – o que se comprova também com os resultados das audiências de conciliação realizadas semanas depois (os índices de acordos superam os 90%) e com os relatos das partes e dos advogados.
A abordagem coletiva na forma de palestras vivenciais ocupa relativamente pouco tempo (cerca de 3 horas) e atinge simultaneamente as partes envolvidas em algumas dezenas de processos. Muitas se identificam com as dinâmicas familiares umas das outras e aprendem juntas a reconhecer os movimentos prejudiciais e os que solucionam.
Posteriormente, quando da realização das audiências de conciliação, os acordos acontecem de forma rápida e até emocionante, pois os que participaram das vivências tendem a desarmar seus corações e reconhecer que, por trás das acusações e dos rancores mútuos, existe um sentimento de amor verdadeiro e a dor da frustração.
Dessa forma, além de contribuir para o aperfeiçoamento da Justiça, a prática também auxilia a melhorar a qualidade dos relacionamentos nas famílias – que, sabendo lidar melhor com os conflitos, podem viver mais em paz e assim proporcionar um ambiente familiar melhor para o crescimento e desenvolvimento dos filhos, com respeito e consideração à importância de cada um. Consequência natural disso é a melhora nos relacionamentos em geral e a redução dos conflitos na comunidade.
OUTRAS EXPERIÊNCIAS COM CONSTELAÇÕES NA JUSTIÇA
Outras diversas experiências vêm sendo realizadas com constelações na Justiça, tais como: interrogatório de crianças e adolescentes com uso de bonecos; constelações em instituições de acolhimento (abrigos) para buscar a melhor solução para crianças e adolescentes institucionalizados – retorno à família de origem, encaminhamento à família extensa ou à adoção; constelações na área criminal com agressores, vítimas e agentes do Estado; constelações com adolescentes autores de atos infracionais, suas famílias e vítimas; etc.
Oportunamente poderemos tratar dessas outras experiências, já com alguns resultados concretos a relatar.
Referências bibliográficas:
1 HELLINGER, Bert, in FRANKE-BRYSON, Ursula, O rio nunca olha para trás. Conexão Sistêmica, 2013, p. 15.
2 HELLINGER, Bert. A fonte não precisa perguntar pelo caminho. Atman, 2005. pp. 118/119.
Referência ao presente artigo, para citações:
STORCH, Sami. Direito Sistêmico: primeiras experiências com constelações no judiciário. In Filosofia, Pensamento e Prática das Constelações Sistêmicas – nº 4. São Paulo: Conexão Sistêmica, 2015.
Clique na imagem para ir ao post publicado por ocasião do lançamento dessa revista, com mais informações a respeito:



Capa da novo número da revista da Editora Conexão Sistêmica, lançada no dia 3/10/2015.




SAMI STORCH
Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia. Graduado em direito pela USP – Universidade de São Paulo. Mestre em Administração Pública e Governo pela Fundação Getúlio Vargas (EAESP/FGV-SP). Doutorando em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Treinamento Avançado em Constelações Familiares com Bert Hellinger pela Hellingerschulle – Alemanha. Formado em Consultoria Sistêmica Empresarial, Coaching e Constelações Organizacionais – Abordagem Bert Hellinger (Coord.: Hoffmann & Partners / Alemanha – Brasil). Desde 2006, vem obtendo altos índices de conciliações e encontrando soluções bem sucedidas com a utilização dos princípios e técnicas das constelações sistêmicas para a resolução de conflitos na Justiça.












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